Filha de Carolina de
Jesus diz que não conseguiu ler livro mais famoso da mãe
Camila Maciel – Repórter da Agência Brasil
“15 de julho de 1955 – Aniversário de minha filha Vera
Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos
gêneros alimentícios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente,
somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e
remendei para ela calçar...” Trecho de abertura do livro O
Quarto de Despejo, 1960
As
lembranças da infância na favela do Canindé, zona norte de São Paulo, ainda
emocionam a professora Vera Eunice de Jesus Lima, 61 anos. Filha de Carolina Maria de Jesus (1914-1977), uma das primeiras
escritoras negras do Brasil, ela contou que nunca conseguiu ler por completo o
livro mais famoso da mãe, Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada.
“Leio pedaços. Começo a ler, leio, abro. Não é um livro que consigo ler na
sequência”, disse.
Lançado
em 1960, o livro foi um grande sucesso na época, ao reunir os relatos da vida
na favela – um universo que começava a surgir nas cidades brasileiras – e
revelar o cotidiano simples e forte de uma mulher negra, catadora e mãe de três
filhos, que escrevia nos cadernos que encontrava no lixo. Carolina estudou apenas
um ano e meio na escola formal, mas mantinha o hábito da leitura.
Carolina
Maria de JesusAudálio Dantas
A
conversa com a professora ocorreu durante uma visita à exposição Carolina em
Nós, no Museu Afro Brasil, na capital paulista. Ela estava acompanhada de
alunos de ensino médio de uma escola pública na qual leciona. Os estudantes não
desconfiavam, contudo, que a própria professora era filha da homenageada. “Eles
estão aí e olham para mim, não estão entendendo, porque não sabem [que sou
filha dela]. Estão andando e não entendem o que acontece”, disse. Ela informou
que a ideia é trabalhar o tema da consciência negra em novembro com os
estudantes, quando a origem de Vera será revelada. “Será uma surpresa”,
afirmou.
Desde
o ano passado, muitas organizações e movimentos, especialmente de cultura e de
mulheres negras, estão prestando homenagens a Carolina Maria de Jesus pelo
centenário de nascimento da escritora, que também gravou discos. No depoimento
de Vera, é possível aproximar um pouco do universo de Carolina e conhecer mais
sobre sua vida, obra e personalidade.
O
centenário
"Até
eu estou assustada com a repercussão [das comemorações do centenário] e de como
os negros estão valorizando a Carolina, porque estão se espelhando nela. Tem
várias Carolinas agora que também estão escrevendo, estão procurando mais o
lado da cultura. Como uma pessoa que nasce como ela nasceu, lá na casa de sapê,
pau a pique, consegue chegar onde ela chegou, sendo conhecida
mundialmente?", questionou Vera.
Saiba
Mais
Carolina
viveu altos e baixos. Ela sofreu demais em Minas Gerais. Depois veio para cá,
ficou na favela, foi tendo os filhos e quando o Audálio [Dantas, jornalista]
descobriu oQuarto de Despejo [publicado a partir dos diários
pessoais de Carolina], que lançou o livro, ela ficou no auge. Diz que nunca
houve nem haverá uma escritora no Brasil para vender mais livros como ela
vendeu em uma semana. Depois, ficou meio afastada, foi a época em que
ficou esquecida e agora, no centenário, ela explodiu.
A
mãe e a escritora
Era
uma mulher forte, determinada, lutadora, criou os filhos, não dava moleza. Era
brava, mas se ela resolvesse que não ia te dar uma entrevista, não dava. Não
havia quem fizesse ela falar. Mas, como mãe, tinha aqueles momentos de ternura,
me punha no colo, bem preocupada em arrumar comida para a gente. E, nas horas
em que, como ela dizia, tinha comida em casa, essas músicas que estão tocando
[nos alto-falantes do museu tocam os discos lançados por Carolina], a gente
cantava. Todos os filhos tocavam violão, ela ensinou. Imagina, a minha mãe
catava papel o dia inteiro e com três filhos para comer, meu irmão adolescente.
“Esse homem é famélico”, como ela falava. Com essa situação, não podia estar
sempre calma, tranquila.
A
paixão pelos livros
Essa
história vem lá de Sacramento [MG]. A mãe dela era casada e apareceu o pai de
Carolina na praça. Era um negro repentista, inteligentíssimo. A mãe dela ia na
praça, se apaixonou e nasceu Carolina. Minha mãe, já de pequena, era diferente.
Como ela falava: “Eu era uma negrinha feia e chata”. Ela queria saber de tudo,
era muito curiosa. A mãe dela a levou para o Eurípedes de Barsanulfo, que era
um médium, e ele falou: “Ela não é chata. Sua filha vai ser uma escritora, uma
poetisa”. Daí, a mãe respondeu: “O que será? Que doença é essa?”. Aí, quando as
pessoas falavam: “Nossa, a negrinha é chata, né?”, ela respondia: “Não, minha
filha é poetisa”. A mãe dela nem sabia o que era.
Uma
fazendeira, dona Maria Leite, disse: “Vamos colocá-la na escola”. Estudou um
ano e meio. Não queria ir de jeito nenhum, mas depois tomou gosto pela escola.
Ela dizia que no primeiro dia de aula queria ir embora, porque queria mamar. E
a professora dela, só teve esta, chamava Lenita, disse: “Você vai estudar e não
vai mamar, Carolina Maria de Jesus”. Ela nunca tinha ouvido o nome dela, ouviu ali.
Até então, era Bitita.
A
mudança para São Paulo
Ela
veio a pé. [Primeiro, conseguiu emprego como doméstica, mas depois precisou
ficar na rua com o nascimento do primeiro filho]. Ela ficava na rua e era para
vir um político famoso, então pegaram todos os pobres que estavam aí, colocaram
em um caminhão e mandaram para o Canindé. Conseguiu umas madeiras e fez o
barraco. Ela mesmo carregou na cabeça. Carolina falava que toda a força da vida
dela vinha da cabeça, tanto para escrever, quanto para carregar o saco de
papel.
A
vida depois da favela
Nós
fomos para Santana. Imagina, um lugar de classe média alta e chega lá uma mãe
solteira, negra, três filhos, que tinham saído da favela. Vinha um ônibus e
ficava a rua inteira [de fotógrafos, jornalistas]. Aquilo incomodava o dia
inteiro. Minha mãe gostava de música, colocava [o volume] nas alturas, dançava
sozinha a noite inteira. Os vizinhos não aguentavam aquele barulho. A gente
abria a porta e tinha gente, fila, para pedir as coisas a ela, que tentava
atender. Virou um inferno. Eles não suportavam a gente lá. Um dia, ela chegou
em casa às 7h da manhã e disse: “Vamos embora”. E nós fomos para Parelheiros,
um sítio. "Ali tem as árvores que ela plantou, a casa está do mesmo jeito.
Eu penso em fazer um museu lá".
Edição: Lílian
Beraldo