Nordic Black Theatre: o teatro e o paradoxo da
identidade negra na Noruega contemporânea
Nosso Brasil não
aceita a diversidade. Nos tornamos um dos povos mais cruéis do mundo justamente
por renegarmos o fim da escravidão e instituirmos o terrível apartheid
ambiental. Há limites claros para o acesso de não brancos neste pais. A
propaganda ganha prêmios em Cannes mas porque eles ainda não reconhecem o
racismo expresso e limitado na insistência em não reconhecer consumidores
negros. É um pais onde ser negro representa mais de mil vezes o risco de ser assassinado apenas
por ser negro. O exemplo da Noruega sempre calou fundo nos corações e mentes
dos negros brasileiros que lutam contra a exclusão e o isolamento.
O Nordic Black Theatre (NBT) é um
teatro negro em atividade há 23 anos no coração da Noruega. Oriundo do grupo de
teatro político Artists for Liberation, o NBT foi criado pelo diretor teatral
Cliff A. Moustache e pelo produtor Jarl Solberg e foi o primeiro teatro desta
natureza fundado na Escandinávia.
Em abril deste ano, o NBT estreou o
espetáculo Great As I Am, uma narrativa cênica fragmentada que
conta parte da história da lenda viva do boxe Muhammad Ali. O espetáculo foi
apresentado em curta temporada, sempre com casa cheia, na sede do teatro, o Caféteatret,
no centro de Oslo. Em fevereiro de 2016 a produção será retomada e encenada em
um dos palcos mais importantes do país, a Ópera de Oslo.
O diretor Cliff Moustache é um agitador
cultural profundamente interessado em questões como teatro político, identidade
e diálogo intercultural. Para ele, mais que um heroi do esporte, Muhammad Ali tornou-se
um ícone político e (contra)cultural ao converter-se ao Islã e ter sua licença
de boxeador cassada no auge da carreira por se recusar a lutar na Guerra do
Vietnã. Em meio à polêmica, Ali enfrentou o patriotismo americano ao declarar:
“Não tenho problemas com os vietcongs. Nenhum vietcong jamais me chamou
de nigger.” Sua fala irônica, rápida e rimada é hoje comparada ao
rap e à poesia slam, mas já era sucesso décadas antes de estas expressões serem
integradas à cultura pop ocidental.
Ali é uma das muitas figuras
afrodescendentes retratadas no estilo semi-documental de Moustache ao longo da
história do NBT. Contudo, em 2014 o teatro foi ainda mais longe ao reafirmar
sua identidade multicultural e encenar, na Ópera, a peça Tribute to the
Heroes, que homenageou algumas das personalidades políticas mais
importantes do nosso tempo, independente da sua origem étnica: Madiba Nelson
Mandela, Rosa Parks, Mahatma Gandhi, Che Guevara, Dag Hammarskjøld og Aung San
Suu Kyi.
O NBT é fruto de uma tradição de teatro
político muito forte na Inglaterra e nos EUA. Nos dois países há também uma
forte tradição acadêmica de pesquisa relacionada às práticas teatrais
afro-descendentes. Na Inglaterra, o nascimento do teatro negro se deu através
da massa de imigrantes provenientes das antigas colônias britânicas que
chegaram ao país no pós-guerra. Já o teatro afro-americano é consequência da
segregação institucionalizada que durante séculos obrigou a população negra a
criar seus próprios espaços sociais e artísticos. Nessa tradição, reunir-se, organizar
atividades, resistir a todo tipo de obstáculo e continuar existindo são ações
políticas contundentes, vindas de setores da sociedade duramente oprimidos ao
longo da história. Além disso, as escolhas estéticas e dramatúrgicas são fundamentais
na construção da identidade política do teatro afro-descendente.
No entanto, ao longo dos anos, o
contexto sócio-cultural na diáspora africana presente na Europa e América do
Norte tem sofrido mudanças contínuas. A globalização e a migração tem
contribuído para a transformação da nossa identidade, fazendo necessária a
criação de novos conceitos na tentativa de compreender melhor esses fenômenos.
O livro emblemático de Paul Gilroy, O Atlântico Negro, lançado em
1993, é um marco desse processo.
A identidade de um negro que cresceu na
Europa é algo impossível de se encaixar em valores pré-estabelecidos. Da mesma
forma, para um teatro negro no século XXI, a questão da identidade vai além de
um elenco exclusivamente negro ou da crítica unilateral à sociedade europeia.
Para o pesquisador e dramaturgo
americano Paul Carter Harrison, o maior desafio do teatro negro contemporâneo
está em desenvolver uma prática que contextualize os valores inspirados na África,
para desta forma superarmos os traumas causados pela escravidão e o
deslocamento forçado.[1]
E é exatamente na contextualização de
que fala Carter Harrison que reside a complexidade da identidade negra na
Escandinávia. Para o jovem norueguês negro é fundamental sentir-se parte da
sociedade. Sentir-se norueguês, apesar do estranhamento. “De onde você vem?”,
perguntam-lhe constantemente. “Sou daqui”, responde ele. Ao mesmo tempo, esse
jovem traz consigo uma bagagem diferente, que não é daqui. Paradoxalmente, ele
também tem de preservar uma outra história, uma outra cultura.
O Nordic Black Theatre opera exatamente
dentro deste paradoxo, sem tentar solucioná-lo ou simplificá-lo. É no paradoxo
que o diálogo acontece e é nele que somos levados a reconhecer que a sociedade
escandinava contemporânea não é homogênea. É na aceitação do paradoxo que as
diferenças se transformam em base de troca e compreensão mutua.
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