Invasão
chinesa
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A China está em Portugal como em nenhum país do
Ocidente. E controla sectores estratégicos como a energia, e tão diversos como
a saúde ou os transportes aéreos. Foram a grande novidade da onda de vendas
pós-troika e já ultrapassaram Angola como grande investidor. Querem ter um pé
na base das Lajes
A 26 de setembro, às 20h15, o
primeiro-ministro chinês, Li Keqiang, aterrou na base das Lajes, em Angra do
Heroísmo, juntamente com a mulher e oito membros do seu Governo. O objetivo era
preparar a visita de Estado de António Costa à China, durante a qual o
primeiro-ministro português seria recebido ao mais alto nível, com direito a
uma reunião com o Presidente da República Popular da China, Xi Jinping, no
Palácio do Povo, em Pequim. Portugal está definitivamente na rota de
investimento da China, a segunda maior economia do mundo, liderada por um
Presidente empenhado em reconstruir o Império do Meio e em expandir o mercado
para as suas empresas.
Era a terceira vez em quatro anos
que o primeiro-ministro ou o Presidente da China pisavam a base das Lajes,
concessionada aos Estados Unidos da América. Não se trata de uma mera
coincidência a passagem dos líderes chineses nas Lajes nos últimos anos, é
também um sinal de afirmação da influência chinesa no Atlântico, defende Miguel
Monjardino, académico e especialista em geopolítica e geoestratégia.
Li Keqiang iria pernoitar na
Terceira, isso já se sabia, o que criou espanto foi ter passeado com a mulher
no centro de Angra e assistido a um concerto na Praça Velha. Tocava a Orquestra
de Sopros da Ilha Terceira e os Myrica Faya. Porque o fez? Miguel Monjardino
responde: “É muito interessante. Sente-se seguro para o fazer. E, de certa
maneira, terá querido perceber como é que os açorianos reagiam à sua presença.”
Monjardino acredita que Pequim vai solicitar a passagem regular pela base das Lajes,
como tem feito quando viaja para o continente americano, mas está fora de
questão um uso militar. Quando muito, admite, Portugal e China poderão
estabelecer acordos que envolvam os Açores para as áreas de investigação
marítima e logística, um cenário que o Governo está a equacionar.
A China é o novo grande
investidor em Portugal e foi a novidade da onda de vendas que varreu o país
após a entrada da troika. Está, em termos de perceção, a assumir papel que
antes era atribuído a Angola. E a estender-se a domínios inesperados, como, por
exemplo, os media. Tem comprado das melhores e mais lucrativas empresas
portuguesas.
Troika abre a porta
A grande investida chinesa
iniciou-se em 2011, com o país sob intervenção da troika. A China está a
internacionalizar as suas empresas e Portugal estava endividado e ávido de
dinheiro. Desde então os investidores chineses já aplicaram em Portugal €12,5
mil milhões, mais do que o montante arrecadado com as privatizações naquele
período (€9,5 mil milhões). Até aí o investimento direto era irrisório: um ano
antes de rebentar a crise financeira mundial, em 2007, situava-se nos €2,2
milhões e veio sempre a cair até ao investimento na EDP.
A elétrica presidida por António
Mexia foi a porta de entrada: saiu o Estado português entrou o chinês. Pouco
tempo depois aconteceu o mesmo com a REN. E hoje a China está em Portugal como
em nenhum outro país do Ocidente, com uma presença forte em áreas estratégicas,
como a energia, e uma dispersão significativa em vários domínios da economia,
que vão desde a saúde, os seguros, o imobiliário, o turismo e, entre outros, a
aviação e os media. Quase nada lhes escapa.
Em alta. António Costa, aqui com
o primeiro-ministro Li Keqiang, foi recebido ao mais alto nível na sua recente
viagem oficial à China. Portugal tem sido um dos grandes destinos do
investimento chinês na Europa
FOTO Naohiko Hatta/Poo /REUTERS
Há capital chinês na TAP (HNA),
na Fidelidade (Fosun), na Luz Saúde (Fosun), na comunicação social (entraram na
Global Notícias através da KNJ Investment Limited), no turismo e no
imobiliário. Mas não só. A China poderá estar à beira de se tornar o grande
acionista da banca privada portuguesa. Será uma cartada de mestre, a preços
convidativos, e a colocação de mais um pé na banca europeia. O grupo privado
chinês Fosun está desde o verão em negociações para entrar no BCP, onde
pretende ficar com até 30% do capital. E o Minsheng Financial Group é um dos
cinco candidatos à compra do Novo Banco. Já é chinês o antigo BES Investimento,
foi comprado pela Haitong no final de 2014. Se as operações em curso tiverem
sucesso, os investidores ficarão a controlar cerca de 30% do mercado financeiro
português.
Estado chinês substitui o português
Portugal foi eleito há dez anos
pelos chineses como um dos quatro parceiros estratégicos da China no mundo. Uma
aposta que já começou a dar frutos. Há relações históricas que se retomaram. A
China sente-se bem acolhida, e essa é também uma das razões porque têm
investido em força. O Governo de Pedro Passos Coelho e Paulo Portas
estendeu-lhe a passadeira, quando deixou empresas estatais chinesas tomar o
controlo do sector energético. A EDP e a rede de transporte de energia
portuguesa, a REN, são hoje detidas maioritariamente por duas elétricas
chinesas, a China Three Gorges e a State Grid. O Estado português encaixou com
estas vendas mais de três mil milhões de euros — €2,7 mil milhões por 21,35% da
EDP e €387,15 milhões por 29,9% da REN. Mas entregou ao Estado chinês um
monopólio natural (REN) e uma empresa que tem tido nos últimos anos
praticamente mil milhões de euros de lucro (EDP).
O controlo do sector energético
por uma empresa estatal estrangeira, especialmente a infraestrutura de
transporte, causa arrepios, atingindo, aliás, todo o espectro político
português da esquerda à direita. Mais nenhum país na Europa abriu mão do controlo
da distribuição e transporte de energia. Portugal fê-lo, e o Governo chinês
sente-se agradecido. E pode ir mais além. Na investigação para o livro
“Negócios da China” percebemos que a presença de capital chinês no sector
energético poderá não ficar por aqui e alargar-se à Galp.
Um antigo gestor da petrolífera
admite que a estatal chinesa Sinopec, já parceira da Galp no Brasil, terá nos
seus planos estender a sua participação a Portugal. O facto de a Sonangol,
acionista da Galp juntamente com Américo Amorim, estar fragilizada pode abrir
caminho para isso. Uma hipótese que não é de excluir tendo em conta que uma das
razões que levou a China a comprar empresas portuguesas foi precisamente o
reforço da presença nos países da lusofonia, onde Pequim tem uma importante
palavra a dizer. A Galp está presente em Angola, Moçambique, Cabo Verde,
Guiné-Bissau e São Tomé. Fonte governamental adianta mesmo que os chineses, há
anos a despejar milhões de euros em negócios em África, muitas vezes sem o
esperado retorno, já reconheceram que poderão ter vantagem em estar naqueles
mercados com empresas e gestores que os conhecem há décadas.
A lusofonia, embora não seja o
único, é de facto um dos factores que tem atraído os investidores chineses,
como reconhece Raquel Vaz Pinto, investigadora do Instituto Português de
Relações Internacionais da Universidade de Lisboa. “Portugal tem uma grande
vantagem na perspetiva da China, as possíveis parcerias com o mercado lusófono,
sobretudo Angola e Moçambique, e também o Brasil, embora este caso seja mais
complexo. Há também Macau, que passou a ser uma espécie de placa giratória e
uma porta de entrada, favorecendo Portugal nesta circunstância de país europeu
e lusófono”. Mas não passa apenas por aí. “Portugal tem também empresas com um
valor tecnológico apetecível, como é o caso da EDP Renováveis. E hoje a China
dá uma importância muito grande ao crescimento sustentável. Uma das maiores
fontes de protesto está relacionada com as terras de cultivo e os problemas
ambientais”, avança a investigadora. Raquel Vaz Pinto dá argumentos para a
entrada, por exemplo, na Luz Saúde. “A China, por causa da antiga política de
um filho único, tem hoje uma população envelhecida, e isso também ajuda a
perceber o seu interesse pelo sector da saúde. Esta é claramente uma área em
que a China está à procura das melhores práticas.”
Concorrem para ganhar
Quando sinalizam o interesse por
um ativo, os investidores chineses raramente perdem. Saem quase sempre
vencedores. Isso aconteceu na privatização da Fidelidade, na venda do Hospital
da Luz, na EDP e na REN. Na verdade, ofereceram sempre o preço mais alto, e
isso, foi determinante. Para os menos críticos à chamada invasão de capital
chinês em empresas portuguesas, há reconhecimento, uma vez que consideram que a
China deu a mão a Portugal quando o país mais precisava. Na realidade, os
milhões injetados pelas compras dos chineses foram uma importante almofada numa
altura em que o país tinha o acesso aos mercados limitado e não havia fortes
candidatos às privatizações. Já os mais críticos dizem que o investimento
chinês não traz valor acrescentado, como foi o caso de Fernando Ulrich,
presidente do BPI, que considera Portugal como “o porta-aviões da China para
entrar na Europa”. “Ninguém fica escandalizado com o facto de o presidente da
Fosun ser membro do comité central do Partido Comunista Chinês e as empresas
sejam comandadas pelo Estado e depois é aqui d’el rei quando os angolanos
compram qualquer coisa em Portugal, argumentando-se que não são transparentes”,
comentou Ulrich, em abril em 2015.
Pouco
muda, para já...
Uma coisa é certa, a entrada dos
chineses nas empresas portuguesas tem sido feita de forma discreta. Mantêm os
gestores ao comando das empresas que controlam. António Mexia, continua como
presidente da EDP e Jorge Magalhães Correia da Fidelidade. Isabel Vaz lidera o
destino da Luz Saúde. Até agora as empresas que compraram não fizeram cortes,
mantêm o número de trabalhadores e estão a expandir os negócios. Há pequenas
mudanças, claro. Os chineses apreciam a discrição. António Mexia, por exemplo,
passou a ter uma agenda mediática mais contida. E ultimamente a EDP tem usado
contadores de energia fabricados na China. É, contudo, ainda cedo para perceber
o verdadeiro impacto da entrada de capital chinês nas grandes empresas,
nomeadamente ao nível do investimento e da criação de emprego qualificado. E é
preciso não esquecer que a paciência é um dos trunfos dos chineses.
Se Passos Coelho abriu a porta,
António Costa manteve-a aberta. Portugal é o quinto maior destino do
investimento chinês na Europa, e há uma nova onda de compras a caminho, onde se
destacam, como já referido, o BCP e, provavelmente, o Novo Banco. Na mira estão
agora também turismo e agricultura e a criação de uma plataforma logística no
Porto de Sines, que tem suscitado interesse da China. O convite ao investimento
chinês faz-se sentir também nos corredores da diplomacia. O embaixador da China
em Portugal, Cau Run, esteve há pouco mais de um ano no Porto de Sines numa
visita guiada. Os objetivos foram claros: mostrar a competitividade do porto e
a sua localização geoestratégica, um excelente ponto de entrada na Europa. A
capacidade de expansão do Porto de Sines, sobretudo na área afeta aos
contentores, também foi abordada, já que poderá ser aqui instalada uma
plataforma logística.
As relações diplomáticas com a
China atravessam um momento de ouro. E não deixa de merecer destaque o anúncio
de três voos diretos semanais de Lisboa para Pequim a partir de 2017. Um
estimulo a um maior fluxo comercial e turístico entre os dois países. 2016
deverá fechar com a visita de 180 mil turistas chineses, um recorde absoluto.
A fase de investimento em grandes
empresas, algumas monopolistas acabou, já não há praticamente mais nada para
privatizar, e agora a palavra de ordem é diversificar. E foi esse o recado que
António Costa deixou na visita à China.
China à disputa com Angola?
Coincidência ou não, a verdade é
que a onda de investimento chinês segue um roteiro com semelhanças ao executado
no passado pelos angolanos, que entraram primeiro no sector da energia e depois
foram alastrando os seus domínios para a banca, os media, o imobiliário e
também para as pequenas e médias empresas do sector produtivo. Aproveitando a
debilidade dos investidores angolanos, já sem o poder que os estratosféricos
preços do petróleo lhe garantiam, os investidores chineses estão a substituir
os investidores angolanos como grandes compradores. E com vantagem sobre estes,
tem entrado a preços mais atraentes.
Não é só como o novo grande
investidor que a China está a dar nas vistas. É curioso como os empresários
chineses estão a entrar em empresas onde os angolanos já se encontram. A Fosun
pode vir a tornar-se o maior acionista do BCP, destronando a Sonangol. Há
capital chinês na Global Notícias, até agora controlada por angolanos, e é
grande a especulação sobre o interesse dos chineses na Galp. “A China é um
importante parceiro comercial de Angola. Com a descida dos preços do petróleo,
os angolanos perderam o fulgor, passaram a ter de partilhar participações em
determinados negócios, e a China está a assumir posições que antes eram dos
angolanos”, sublinha Raquel Vaz Pinto. Contudo, a investigadora afirma que é prematuro
tirar conclusões sobre o investimento angolano em Portugal ou dizer que esta
entrada dos chineses é coordenada como o Governo de Angola.
Reciprocidade e o debate europeu
Há um grande debate na Europa
face ao investimento direto chinês, a que Portugal tem passado ao lado. O Reino
Unido e a Alemanha, os novos grandes destinos dos investimentos chineses, estão
a torcer o nariz à entrada de Pequim nos sectores estratégicos. Rebentou há
poucas semanas em Berlim a polémica por causa da intenção de compra da grande
tecnológica alemã Kuka pela chinesa Midea Group. O Governo alemão opôs-se.
Começam a criar-se anticorpos na maior economia da Europa. É que nos primeiros
seis meses do ano, os chineses investiram 10,8 mil milhões de dólares na
Alemanha na compra de 37 empresas, e uma grande parte deste investimento
destinou-se a adquirir tecnológicas, a grande coqueluche dos investidores do
Império do Meio.
A chanceler alemã, Angela Merkel,
quer reciprocidade. A Alemanha é a grande exportadora da Europa, e a China é
muito protecionista, predomina ainda o capitalismo de Estado. “A reciprocidade
é o nó górdio. Há um conjunto de sectores na economia chinesa ainda controlados
pelo Estado. Há uma série de questões a analisar sobre o futuro, nomeadamente,
o que irá ser a evolução da elite chinesa. Tem havido uma centralização do
poder no presidente. Ji Xinping é cada vez mais olhado como um imperador, há já
quem lhe chame o presidente imperial”, alerta Raquel Vaz Pinto. A China ainda
não é uma pura economia de mercado e isso levanta muitas questões. Portugal
encontra-se na fase de namoro, mas, não tardará, terá também de entrar neste
debate.
As
autoras acabam de publicar
na Oficina do Livro “Negócios da China”
Artigo
publicado na edição do EXPRESSO de 19 de novembro de 2016
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