Quando o
discurso da meritocracia ignora a desigualdade
O esforço é algo extremamente
importante no tipo de sociedade em que vivemos, e a meritocracia
tem se tornado um conceito defendido por muitos. Mas precisamos
questionar a ideia de que tudo o que as pessoas conseguem ou têm decorre de tal
esforço. É comum veículos de imprensa divulgarem casos de pessoas que
conseguiram “subir na vida” devido a um grande empenho pessoal. Esses casos
podem nos levar a pensar que, se alguém não consegue um bom emprego ou não
passa no vestibular de uma universidade de prestígio, é porque não se esforçou
o suficiente. Mas será que isso é verdade?
Por Vanda Mendes Ribeiro Do Brasil Post
Até a Idade Média, o nascimento
determinava o lugar social de cada pessoa. Um filho de nobre tinha posições
sociais (como cargos na estrutura do Estado ou títulos de nobreza) garantidas
pelo simples fato de ter nascido em uma família nobre. O filho de um
trabalhador do campo jamais conseguiria tais títulos ou cargos. A ascensão
social era algo que nem estava no imaginário das pessoas.
Com o fim desse sistema social, a
ascensão da burguesia e o surgimento da democracia moderna, garantiu-se
legalmente o direito de qualquer um,independente da posição social de seus
familiares, poder obter um status elevado. Uma filha de um trabalhador rural
pode, por direito, chegar a ser Presidente da República, juíza ou professora
universitária. Desta noção consolidou-se a crença de que, para ascender
socialmente, basta que nos esforcemos.
Há, porém, fortes evidências
científicas, detectadas por meio de pesquisas, como as do sociólogo francês
Pierre Bourdieu, que permitem questionar esse pensamento tão arraigado entre
nós. No tipo de sociedade em que vivemos, qualquer pessoa pode, teoricamente,
alcançar qualquer posição social. Mas, na prática, o peso daorigem social ainda
é muito mais determinante do que gostaríamos de acreditar.
Para começar, nas sociedades
democráticas não há posições vantajosas em número suficiente para todos. Se a
totalidade dos indivíduos recorressem à mesma quantidade de esforço pessoal,
não haveria como cumprir a máxima do “se esforce e então conseguirá o que
deseja”. Portanto, esse pensamento expressa uma profecia que jamais poderia ser
cumprida.
Crianças de famílias mais pobres
ou de posições sociais menos vantajosas têm menor rendimento nos estudos, reprovam
mais e possuem índices de abandono escolar maiores. Isso independe do quanto se
esforcem. Devido aos avanços das pesquisas no campo social, já sabemos que até
mesmo as expectativas dos jovens com relação às suas profissões futuras são
influenciadas pelo nível socioeconômico da família. Ter ou não acesso desde
cedo à educação infantil, por exemplo, exerce grande impacto na trajetória
escolar das crianças.
O peso das origens do nascimento
sobre as posições sociais que os indivíduos alcançam é muito forte. Isso é
verdadeiro para todos os países ditos democráticos, e ainda mais determinante
naqueles em que o Estado age pouco para coibir o acúmulo de privilégios. No
Brasil, por exemplo, se você é de família rica terá mais chances de frequentar
a educação infantil, tenderá a ser alfabetizado sem grandes dificuldades, será
menos reprovado durante a educação básica, terá uma escola com aulas todos os
dias e que acompanhe o ensino e a aprendizagem de cada estudante. Mas o mesmo
não ocorre com aqueles alunos que estão em escolas de regiões periféricas.
Sabe-se também que as redes de
contatos, o conhecimento acumulado ao longo da vida e a capacidade de falar
outras línguas são importantes para se galgar uma posição vantajosa na vida
adulta. Mesmo que o filho de um industrial não tenha estudado tanto quanto o
filho de uma faxineira, por exemplo, sem dúvida ele terá mais portas abertas
para oportunidades interessantes.
A repercussão disso na escola
pode ser terrível, e perpetuar as desigualdades.
Diante da injustiça de ser tratado como incapaz, alguns especialistas como
François Dubet afirmam que, com o tempo, alunos que “fracassam” tendem a
tornar-se inertes ao ambiente escolar. Eles podem abandonar mentalmente os
estudos, ou tornar-se indisciplinados ou mesmo violentos.
Para manter o senso comum de que
o esforço é o que justifica o alcance de posições vantajosas, teríamos que
negar todo um corpo de estudos acadêmicos que evidenciam o peso das origens
sobre as escolhas e as possibilidades de um indivíduo.
Ao invés de recusar estas
evidências, pensadores têm se dedicado a propor estratégias para uma escola
mais justa, como a adoção de outros critérios que não o meritocrático na
educação básica. Uma dessas propostas, que tem sido muito discutida
recentemente, é o princípio de que todas as crianças devem aprender o que o
Estado define como necessário nessa etapa da escolaridade. A educação básica
seria, desse modo, um momento de acumular conhecimentos, de dotar a todos das
mesmas condições de base, de nivelar o que foi muito diferente desde o
nascimento, deixando o critério meritocrático para ser utilizado apenas
posteriormente, a partir do ensino superior.
É evidente que não podemos
abandonar completamente o mérito, pois isso nos levaria de volta a uma
sociedade com a determinação total do nascimento, da posição social original
dos indivíduos. Devemos garantir que os adultos sejam livres para fazer uso de
seus esforços para transitar socialmente, abrindo possibilidades para a
mobilidade social de todo e qualquer um. Mas não podemos fazer uso de um
discurso de meritocracia que justifica e reproduz as desigualdades, muitas
vezes diminuindo aqueles com posições sociais menos valorizadas, fazendo vista
grossa às desigualdades estruturais do pais.
É preciso que ampliemos a
capacidade de nossas instituições gerarem igualdade de oportunidades. Isso é
extremamente necessário na Educação Básica, um momento da vida em que a
sociedade determina que todos temos os mesmos direitos educacionais. O período
da escolaridade obrigatória não combina com a ideia de que os resultados de
aprendizagem e a trajetória escolar devam depender do esforço individual. Deve,
sim, depender do esforço institucional, do Estado. Quando todos os jovens, ao
deixarem a Educação Básica, tiverem galgado um patamar considerado adequado, aí
então será mais justo falar em mérito para tratar do acesso às suas futuras
oportunidades.
Tags: desigualdades sociais · Educação
· em
pauta · meritocracia
Leia a matéria completa em: Quando o discurso da meritocracia ignora a desigualdade - Geledés http://www.geledes.org.br/quando-o-discurso-da-meritocracia-ignora-desigualdade/#ixzz468YCBmlH
Follow us: @geledes on Twitter | geledes on Facebook
Nenhum comentário:
Postar um comentário